Em 2022, se discutia a “síndrome de burnout” com notícias de que ela passara a ser considerada doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde. Ao pé da letra, não era bem assim, já que ela não é uma “doença”, mas uma síndrome. Mas nem por isso o assunto não era e não é sério.
Na época, como agora com a NR-1 (como se o assunto fosse novo!), a saúde mental ficou em voga.
Se recordam também da lei de certificação de empresa que cuida da saúde mental? Essa nem o governo tirou do papel.
Bem, falamos de tudo isso aqui.
E só a síndrome de burnout, NR-1 e sua possível multa deveriam nos preocupar quando falamos de doença mental?
Vamos iniciar pela Síndrome Burnout, que é descrita no código QD85 como[2]:
“…resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciada com sucesso.
Ela é caracterizada por três dimensões:
1) sentimento de esgotamento ou exaustão energética;
2) aumento da distância mental do trabalho, ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados ao trabalho; e
3) sensação de ineficácia e falta de realização.
Burnout refere-se, especificamente, a fenômenos no contexto ocupacional e não deve ser aplicado para descrever experiências em outras áreas da vida.
Na CID-11 ela está relacionada a condições de emprego e desemprego, no entanto, a CID-10 já continha várias indicações de condições de saúde, ou perda dela, relacionadas ao trabalho e aos colegas de trabalho, encontradas nos códigos “Z” da CID-10[3].
E dentre eles, no capítulo dos problemas relacionados a emprego e desemprego (Z56 Problems related to employment and unemployment), tínhamos:
- Z563 Ritmo de trabalho penoso
- Z564 Desacordo com patrão e colegas de trabalho
- Z565 Má adaptação ao trabalho
- Z566 Outras dificuldades físicas e mentais relacionadas ao trabalho
- Z567 Outros problemas e os não especificados relacionados com o emprego
Mesmo a síndrome de burnout já estava lá, no código Z73, apenas não relacionada diretamente ao trabalho: “Z730 Esgotamento”
Portanto, o tema não é novo.
As definições relacionavam-se à literatura médica que gerou a nova definição na CID-11. Portanto, hoje, a síndrome de burnout deve, para ser reconhecida como tal, conter os elementos descritos na CID-11, e ser resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciada com sucesso e com as dimensões listadas acima.
Se esses elementos não estiverem presentes, não será a síndrome de burnout, mas outra doença ou condição de saúde mental, que também pode ser relacionada ao trabalho ou não. A prova pericial será essencial na caracterização da síndrome, que como visto, possui elementos bem definidos.
Mas é só isso mesmo?
Quais as consequências de uma saúde mental debilitada, seja por uma síndrome, como o burnout, seja por doenças mentais que podem ou não ser geradas ou alimentadas (a famosa concausa) pelo ambiente de trabalho?
Algumas profissões têm maior risco.
Pesquisando, tive a surpresa de descobrir que a taxa de suicídio entre veterinários é muito alta[4].
Segundo a reportagem do Conselho Regional de Medicina Veterinária, “Precisamos falar sobre a Síndrome de Burnout, o tipo mais devastador de estresse”. No Datasus, a Medicina Veterinária é a profissão com maior taxa média de suicídio por ocupação entre 1980 e 2007. Segundo a mesma reportagem, considerando o burnout, verificou-se que os médicos veterinários estão particularmente em risco, com taxas de suicídio alarmantes, e 25% dos profissionais enfrentam burnout.
O site do sindicato dos bancários[5] traz dados alarmantes também. Mas traz uma atitude proativa de amparo e ajuda:
A Clínica do Trabalho do Sindicato é um espaço de escuta e ajuda profissional, que atende os bancários e as bancárias com risco de adoecimento ocupacional ou já adoecidos, afastados ou não do trabalho. Se você estiver precisando de ajuda, acesse o link do Observatório de Saúde do Trabalhador.
O esgotamento pelo trabalho em si, ou pelo ambiente de trabalho não é assunto só no Brasil.
No Japão, há até mesmo um termo para a morte decorrente de condições de trabalho. É o karoshi[6], que significa: morte, como por ataque cardíaco ou suicídio, devido ao excesso de trabalho ou ao estresse e exaustão relacionados ao trabalho.
Na França, o caso mais emblemático foi da France Telecom, depois Orange[7] com 39 suicídio de empregados, que gerou a condenação criminal e civil de seus dirigentes. Este ano, uma empresa francesa foi condenada por homicídio culposo pelo suicídio de um empregado que em 2021, isolado pela pandemia, o empregado foi colocado à disposição em uma outra empresa, sem orientação, e com muitas horas de trabalho[8].
No caso da Orange, foi reconhecido assédio institucional[9], que se caracteriza por decorrer da política da empresa que gera conscientemente a deterioração das condições de trabalho dos empregados. Pior, hoje, volta a haver denúncias do sindicato dos cargos e direção de que a situação de assédio estaria retornando[10].
E por que esse assunto ficou tão sombrio? Porque ele é sombrio e importante
Saúde mental não é assunto para medidas simples, corriqueiras, para um programa de ESG ou de benefícios. Realizar uma consulta com psicólogo, fazer pesquisa de clima, questionários, treinamentos… São paliativos, são complementares a uma ação cuidadosa e técnica.
É um assunto da segurança e medicina do trabalho, com conhecimento especializado.
Assédio é assunto muito antigo, mas sempre, infelizmente presente. Pelo que me recordo, o primeiro treinamento que dei foi antes dos anos 2000.
Acabei de falar da NR-1, sua suspensão por um ano não muda a importância do assunto. Não é um assunto “regulatório”, para um “tick” em algum sistema de IA de meta cumprida.
É um assunto humano e de responsabilidade moral e legal.
Há consequências para a empresa e os envolvidos.
Se a doença mental for reconhecida como doença ocupacional, será deferido um afastamento previdenciário com nexo, o B91, garantindo ao empregado doze meses de estabilidade após o retorno, salvo prazo maior em instrumento coletivo. E sempre haverá a responsabilidade da empresa por qualquer dano resultante quando comprovada sua culpa por negligência, descumprimento de obrigação legal e outras causas.
Assim, cuidar do ambiente de trabalho e do bem-estar mental dos empregados torna-se imperativo.
A prevenção deve ir além da mera adesão ao horário de trabalho e aos intervalos, abrangendo as condições e o ambiente de trabalho em geral. Por exemplo, o assédio moral no local de trabalho está frequentemente relacionado com a doenças mentais, metas, programas de remuneração variável que geram corrupção e assédio, ou seja, nenhuma situação de trabalho, nem mesmo de excesso de jornada, ou mesmo controle de uso de produtos químicos, que podem gerar problemas mentais, como os agrotóxicos[11] podem ser afastados.
Em resumo: a saúde mental abrange muito mais do que apenas burnout. Reconhecer o esgotamento como uma questão de saúde relacionada ao trabalho apenas colocou o tema em evidência, revelando mais um “sinal de alerta” para as empresas. No entanto, esse sinal é apenas um entre muitos que já se espalham pelo cenário corporativo.
NR-1, burnout, saúde mental, doenças mentais. Não se afaste do assunto só porque ele é “sombrio” – ele é necessário. Envolva seu serviço de segurança e medicina do trabalho, ele dará seu primeiro norte, depois, todos devem se envolver em prol da saúde dos empregados. Todos.
Não vamos esperar casos mais graves certo? Nem o “setembro amarelo”. Não é de campanha que se trata.
Para as pessoas que querem e precisam conversar, o Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, o atendimento é gratuito a qualquer pessoa, por meio do telefone: 188, chat ou e-mail.
Por Maria Lucia Benhame, advogada e sócia do escritório Benhame Sociedade de Advogados, especialista em gestão trabalhista. É uma das colunistas do RH Pra Você. O conteúdo dessa coluna representa a opinião do colunista. Foto: Divulgação. [1]